Marcela Conceição Santana Santos¹
Resumo
Este artigo investiga os impactos da vigilância estética e afetiva sobre a identidade da mulher negra brasileira. Utilizando autores do feminismo negro, como Patricia Hill Collins, Sueli Carneiro e Grada Kilomba, e fundamentado em uma pesquisa com 340 mulheres negras, o texto evidencia como a liberdade de escolha estética, comportamental e afetiva, ainda é restringida por padrões intracomunitários e racismo estrutural. A análise revela que apenas 0,2% das entrevistadas se sentem plenamente livre para serem quem são. A partir desse panorama, o artigo propõe uma reflexão sobre autonomia, acolhimento e os limites da moralidade militante.
Palavras-chave: Liberdade estética; mulher negra; identidade; palmitagem; vigilância comportamental.
Abstract
This article investigates the impact of aesthetic and affective surveillance on the identity of Black Brazilian women. Drawing on Black feminist authors such as Patricia Hill Collins, Sueli Carneiro, and Grada Kilomba, and grounded in a survey of 340 Black women, the text demonstrates how freedom of expression , in appearance, behavior, and affection, is still constrained by intracommunity norms and structural racism. The analysis reveals that just 0,2% of the participants feel entirely free to be themselves. From this context, the article calls for deeper reflection on autonomy, community care, and the moral boundaries within activism.
Keywords: Aesthetic freedom; Black women; identity; interracial relationships; behavioral surveillance.
A estética negra, sobretudo a feminina, ainda é alvo de intensa vigilância, tanto por parte da sociedade em geral quanto, infeliz e contraditoriamente, dentro da própria comunidade negra. Mulheres negras que alisam os cabelos, usam mega hair, tranças ou adotam estilos considerados 'fora do padrão militante' muitas vezes enfrentam um julgamento simbólico que questiona sua identidade racial.
Essa vigilância, embora travestida de afirmação identitária, atua muitas vezes como um novo mecanismo de opressão. A liberdade de escolha estética torna-se condicionada à aceitação coletiva, criando um paradoxo: a mulher negra só é reconhecida como tal se corresponder a expectativas rígidas e normativas que ignoram sua subjetividade.
Tudo começou a partir de um vídeo nas redes sociais. Nele, uma influenciadora negra questionava, de forma contundente, as escolhas estéticas de outras mulheres negras, afirmando que quem usava mega hair, alisava o cabelo ou optava por determinadas roupas “Podia estar vivendo em dependência estética, ao não aceitar seu cabelo natural”. O conteúdo me atravessou. Eu, uma mulher negra, com cabelo crespo que já passou por processos químicos, transições e mega hair por absoluta escolha pessoal e me vi julgada, questionada, impugnada em minha própria identidade.
Na mesma hora em que assisti ao vídeo escrevi um comentário sincero e desabafei: “Por que o cabelo que uma pessoa usa é um problema para o outro? Honestamente, qual o problema de a mulher negra alisar o cabelo, se ela quiser e se sentir bem assim? Trançar, usar extensões, mega hair, laces, black, natural ou não. Em verdade o que nos aprisiona é sermos constantemente pressionadas a seguir um comportamento estipulado por um grupo de pessoas que acham que tem o direito de dizer o que é o correto a fazer, caso contrário estamos negando as nossas raízes. É possível entender o quanto isto é violento? Parem de rotular as pessoas, como se o fato delas não seguirem “as novas regras da negritude” as tonassem menos negras. A mulher preta sofre diariamente por conta de todas as suas escolhas, como se não lhes fossem legítimos os direitos de escolher, e de viver segundo as suas próprias convicções...”. Este foi apenas um trecho do longo desabafo que postei no comentário deste vídeo, mas ficou um desconforto rondando minha mente.
Esse desconforto, que reverberou muito além do episódio, foi o ponto de partida para este artigo. O que vivi não foi uma experiência isolada. Outras mulheres negras compartilham desse sentimento: a necessidade constante de justificar escolhas, o medo de não “ser preta o suficiente” para certos espaços, o constrangimento por não se encaixar nas regras estéticas e morais da própria comunidade. Essa patrulha da identidade, ainda que travestida de “autenticidade”, nos fere.
Esse tipo de vigilância estética e moral pode ser, sim, psicologicamente violento. E é sobre isso que precisamos falar com seriedade, à luz da psicanálise, da sociologia e também do Direito.
A vigilância comportamental sobre mulheres negras não se restringe à estética. A escolha de parceiros, os afetos, o modo de se portar em público ou de manifestar opiniões são constantemente examinados. A mulher negra que se relaciona com um homem branco, por exemplo, frequentemente é acusada de estar “fugindo de sua raça” ou, de forma mais pejorativa, é rotulada como praticante de palmitagem, um termo usado para descrever relacionamentos inter-raciais, sobretudo entre mulheres negras e homens brancos, com conotação de traição ou rejeição à identidade racial.
Embora o debate sobre palmitagem tenha importância crítica em contextos de branquitude como padrão de prestígio e desejo, ele também pode, quando mal interpretado ou utilizado de forma hostil, reforçar a culpabilização da mulher negra por suas escolhas afetivas, desconsiderando a complexidade de suas subjetividades e histórias. Esse julgamento moral contribui, direta e indiretamente, para o agravamento da chamada solidão da mulher negra, conceito desenvolvido por intelectuais como Sueli Carneiro e Jurema Werneck, que tratam da marginalização afetiva e sexual das mulheres negras em razão do racismo estrutural.
Segundo levantamento do Instituto Locomotiva (2020), 56% das mulheres negras no Brasil relatam dificuldades em estabelecer relações amorosas duradouras. Mais da metade delas atribui isso à percepção social de que são "fortes demais" ou "menos femininas", estigmas diretamente enraizados na herança colonial e racista do país. Sueli Carneiro (2003) define essa solidão como um produto direto da desumanização afetiva da mulher negra, que é sistematicamente colocada fora do lugar do cuidado, do desejo e da sensibilidade.
Trata-se de uma solidão que é simbólica, emocional e estrutural, e que se agrava quando a mulher negra é também cerceada dentro da própria comunidade por não corresponder a expectativas comportamentais rígidas, incluindo aquelas ligadas à escolha de parceiro. Quando a estética, o amor e o desejo são transformados em instrumentos de vigilância e controle, o direito à liberdade afetiva da mulher negra é violentado, e isso a posiciona em um verdadeiro limbo social e identitário.
O conceito de violência psicológica, conforme o art. 7º, II da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), abrange qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima, que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher. Ora, o policiamento constante sobre escolhas estéticas, afetivas e identitárias, mesmo quando oriundo de outros membros da comunidade, pode sim configurar esse tipo de violência.
A psicóloga Neusa Santos Souza, em seu clássico Tornar-se negro (1983), demonstra como a subjetividade da mulher negra é atravessada pela necessidade de “representar” a negritude para ser aceita, tanto pela sociedade branca quanto pelo próprio grupo racial. Essa necessidade de “representatividade impecável” resulta em sofrimento psíquico, angústia e crises de identidade.
De forma complementar, o artigo 186 do Código Civil Brasileiro prevê que aquele que, por ação ou omissão voluntária, causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Portanto, atos sistemáticos de humilhação pública, exposição negativa ou discursos de ódio travestidos de “militância”, inclusive nas redes sociais, podem ensejar responsabilidade civil por dano moral.
A vigilância social exercida sobre as escolhas afetivas e estéticas da mulher negra não é apenas uma questão de identidade: é também uma questão jurídica. Quando essa vigilância assume forma de exposição vexatória, humilhação pública, assédio moral, incitação à exclusão ou constrangimento reiterado, configura-se violação de direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (art. 5º, X), e o princípio da igualdade (art. 5º, caput e inciso XLI).
Conforme destaca Maria Celina Bodin de Moraes (2015), o dano moral se concretiza não apenas pela dor psicológica, mas pela afronta à dignidade de um sujeito diante de comportamentos que o desqualificam em sua existência. No caso da mulher negra, essas agressões, muitas vezes travestidas de “críticas militantes”, resultam em um controle simbólico violento sobre seus corpos, escolhas e afetos, com potencial lesivo real.
O Código Civil, em seu artigo 186, prevê que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O artigo 927 do mesmo diploma legal complementa ao prever que esse ato dá origem à obrigação de indenizar.
A jurisprudência brasileira já reconhece, inclusive, a responsabilidade civil por danos morais resultantes de perseguições ou constrangimentos públicos, ainda que em redes sociais ou círculos privados. O TJSP julgou procedente ação em que uma mulher foi atacada por seu relacionamento interracial com base em argumentos “militantes”, reconhecendo o excesso e a lesão à sua integridade psíquica (TJSP – Apelação Cível n.º 1001120-08.2021.8.26.0576).
Além disso, a violação de direitos nesse campo pode, em determinadas circunstâncias, ser enquadrada como violência psicológica de gênero, prevista no art. 7º, II, da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), quando caracterizada como conduta que cause danos emocional, diminuição da autoestima ou coerção da liberdade de ação e expressão da mulher, ainda que o agente não seja seu companheiro.
Não se trata aqui de esvaziar o debate racial, tampouco silenciar críticas à estrutura do racismo. Trata-se de reconhecer que até o discurso progressista pode ser cooptado por práticas punitivistas e normativas, que acabam por reproduzir a mesma opressão que dizem combater, quando retiram da mulher negra o direito mais básico: o de ser e amar como quiser, sem medo.
Casos de exposição pública vexatória, humilhações nas redes sociais, campanhas de deslegitimação pessoal e outras formas de linchamento digital podem ser judicializados com base no seguinte arcabouço legal vigente:
Dano moral: art. 5º, inciso X da Constituição Federal e art. 186 do Código Civil;
Violência psicológica contra a mulher: art. 7º, II da Lei Maria da Penha;
Cyberbullying e assédio virtual: aplicáveis pelo Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014);
Responsabilidade por conteúdo ofensivo em redes sociais: entendimento do STJ no REsp 1.903.273/RJ (2021), que reconhece o dever de indenizar em casos de linchamento digital.
Não se trata de censurar o debate interno da comunidade negra, mas de limitar os abusos que ultrapassam o campo da crítica construtiva e se transformam em ataques à dignidade humana.
Viola Davis, em entrevistas e no documentário The Hair Tales (2022), afirma com veemência: “Não há uma única maneira de ser negra.” Essa é a verdade que precisa ser reiterada: a estética é expressão, não medidor de consciência racial.
A patrulha comportamental que cobra das mulheres negras uma “pureza identitária” contribui para o cerceamento de suas subjetividades, afetos e direitos fundamentais. Mais do que isso, é um reflexo do trauma coletivo mal curado, cujo, ao invés de unir, isola.
Conceição Evaristo, ao cunhar o termo escrevivência, nos deu a chave: só quem vive sabe, e só quem vive pode narrar. Por isso, narramos. Porque o silêncio nos sufoca. Porque a liberdade de ser, de sentir, de existir, inclusive com cabelo liso, mega hair, companheiro não preto ou turbante, é a essência da luta antirracista.
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REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet).
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Geledés, 2003.
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.
DAVIS, Viola. The Hair Tales. Hulu/OWN, 2022. Documentário.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
INSTITUTO LOCOMOTIVA. A solidão da mulher negra. Relatório Técnico, 2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. São Paulo: Cobogó, 2019.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
SANTOS SOUZA, Neusa. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.903.273/RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 09/03/2021
Para aprofundar este debate, foi realizada uma pesquisa com 340 mulheres negras, com o objetivo de compreender como elas percebem a relação entre estética, identidade, liberdade de expressão e pertencimento. Abaixo, destacam-se os principais dados e reflexões coletadas ao longo do questionário:
Bloco 1 – Cabelo, Estética e Validação
88,2% usam cabelo com algum tipo de intervenção (química, trança, lace, mega hair etc.);
50% já sentiram que precisam se comportar ou se vestir de forma específica para serem vistas como negras legítimas;
52,9% relataram julgamentos por causa do cabelo por outras pessoas negras.
Depoimentos marcantes:
“Até me sinto à vontade com meu cabelo, gosto de usar ele liso e com mega hair, mas sim, é perceptível a pressão para que a mulher negra use seu cabelo natural como uma regra.”
“Tenho 70 anos e aliso cabelo desde os anos 60. Depois começaram a tratar quem alisava o cabelo como quem não gostasse de si mesma.”
Bloco 2 – Autoestima e Aparência
100% das mulheres relataram algum nível de impacto entre estética e autoestima.
38,5% disseram não se sentir livres ou sentem pouca liberdade para se expressar.
Depoimentos marcantes:
“Minha autoestima não se abala por estas questões porque sempre vou fazer o que eu quiser.”
“Quando estou com meu cabelo bem arrumado, maquiada, com uma roupa que me valoriza, me sinto extremamente bonita, capaz e imbatível.”
Bloco 3 – Relações Afetivas e Palmitagem
70,6% já se relacionaram com pessoas não negras;
47,1% ouviram críticas ou foram julgadas por isso;
38,2% acreditam que existe uma expectativa para que mulheres negras só se relacionem com homens negros.
Depoimentos marcantes:
“Namoro um homem branco há pouco mais de 4 meses e até hoje me chamam de palmiteira ‘brincando’. Onde estava o homem preto quando eu estava solteira?”
“A expressão ‘palmiteira’ é de longe a forma mais violenta de manutenção da solidão da mulher preta.”
Bloco 4 – Militância e Julgamento Intra-Racial
73,5% já se sentiram deslegitimadas, constrangidas ou cobradas por outras pessoas negras;
53,8% disseram ter moldado seu comportamento para se adequar a espaços militantes.
Depoimentos marcantes:
“Me afastei do movimento negro, não é local de valorização, é local de aprisionamento.”
“Minhas irmãs e tias participam de movimentos negros e sempre criticaram meu cabelo, minhas roupas, meu namorado branco.”
Bloco 5 – Liberdade Pessoal e Expressão
61,7% das mulheres não se sentem livres ou sentem pouca liberdade para serem quem são;
0,2% declarou se sentir plenamente livre.
Depoimentos marcantes:
“Às vezes me sinto compelida a seguir de alguma forma regras que supostamente validam quem eu sou.”
“As redes sociais viraram um canal de policiamento de quem você deveria ser.”
A análise dos dados mostra que a liberdade estética da mulher negra continua sendo condicionada ao olhar externo — seja da branquitude ou da própria comunidade. Não há liberdade plena quando o medo do julgamento, da exclusão e da deslegitimação é uma constante. Apenas 0,2% das 340 mulheres entrevistadas declararam se sentir plenamente livres. Esse é um dado que por si só denuncia a gravidade do problema.
Este artigo não pretende encerrar o assunto, mas iniciá-lo com seriedade e escuta. Que este debate vá além das redes sociais, que se transforme em rodas de conversa, em espaços acadêmicos, em ações afirmativas e, sobretudo, em reconhecimento e escuta real.
Mulher preta, seu corpo é seu território. Sua voz, sua ferramenta. Sua estética, sua escolha. E que sejamos livres — inclusive para não sermos como esperam que sejamos.
Gostaria de registrar publicamente minha profunda gratidão a todas as mulheres negras que participaram da pesquisa “Liberdade Estética e Identidade da Mulher Negra”, cuja etapa de respostas foi recentemente encerrada.
O formulário contou com 340 participações voluntárias e revelou, por meio de dados e depoimentos extremamente potentes, a complexidade da experiência de ser mulher negra em uma sociedade que vigia, impõe e julga. Mais que números, recebi histórias de resistência, dor, afirmação e desejo de liberdade, a liberdade real, que abarca o direito de existir como se é, sem amarras estéticas, afetivas ou comportamentais.
A partir dessas contribuições, pude finalizar este artigo analítico que reúne os resultados da pesquisa com base doutrinária, dados estatísticos e uma abordagem jurídico-social dos impactos da vigilância estética e da patrulha identitária na vida de mulheres negras.
A publicação deste artigo é também uma forma de devolutiva e compromisso com todas as vozes que generosamente construíram essa reflexão coletiva.
Reitero meu agradecimento por cada resposta, cada linha escrita e cada mulher preta que se permitiu compartilhar sua vivência. Vocês são parte essencial de um debate que precisa ultrapassar as redes sociais e alcançar os espaços acadêmicos, jurídicos e institucionais.
Seguimos. E seguimos juntas.
¹advogada, mulher negra, especialista em Direito Previdenciário e Direito Empresarial Consultivo. Atua com ênfase em consultoria jurídica preventiva e estratégica. Nos últimos anos, vem aprofundando sua atuação e pesquisa em temáticas relacionadas às interseções entre direito, comportamento social e relações raciais, com enfoque nos impactos jurídicos e sociais vivenciados por mulheres negras no contexto brasileiro contemporâneo